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Out of Season
A Putada Subjectividade

Há já cerca de quatro anos que Dave Rempis vinha pacientemente a preparar este quarteto. Chegara a altura de mostrar trabalho e o saxofonista escolheu a melhor via, a gravação e edição de um concerto ao vivo, realizado no dia 6 de Outubro de 2003, no clube 3030, em Chicago.

Se provas fossem necessárias, aí estariam elas a confirmar o que já muita gente sabe: alguma da melhor música improvisada do momento provém da Windy City, cuja paisagem está longe de se reduzir a Ken Vandermark, músico com quem Rempis tempos atrás iniciou uma colaboração, integrando o Vandermark 5. Recrutamento que coincidiu com a necessidade de substituir outra das grandes estrelas de Chicago, o chamejante Mars Williams, às voltas com o seu XMARSX e com o Peter Brötzmann Tentet, onde está como peixe na água. Há males que vêm por bem. Ao mesmo tempo que passava a integrar o circulo de Vandermark, Rempis ia desdobrando a actividade criativa via Triage, com Tim Daisy e Jason Ajemian, trio este com o qual gravou dois álbuns, Premium Plastics (Solitaire Records) e Twenty Minute Cliff (Okka Disk).

Mas o caso agora é outro e merece ser devidamente assinalado: Dave Rempis, saxofonista com voz própria, está de volta com Out of Season, a estreia em disco do seu novo grupo. Grande notícia! A abrir a sessão, sax tenor, piano, contrabaixo e bateria, trocam ideias à solta num tema de estrutura simples, classizante na ordem de apresentação das intervenções solísticas. À cabeça, como mote para as intervenções subsequentes, um solo de tenor seco, arrancado a quente. A seguir, o piano de Jim Baker cavalga a onda e aprofunda a sequência de linhas abstractas. Improvisa e repete os motivos melódicos sobre o esteio rítmico da marcação enérgica de Jason Roebke e Tim Daisy, o par perfeito para esta dança.

A um sinal de Rempis saem de cena, ficando o saxofonista sozinho em palco a executar um monólogo sussurrado de fragmentos arrancados às estruturas complexas acabadas de expor pelo quarteto. Que bom gosto, escolher estas tonalidades escuras e sombrias, que se desvanecem e ficam a pairar no tempo... . Pausa. O silêncio é quebrado pelo impetuoso regresso do trio acompanhante, que envolve o tenor. Em boa velocidade, juntos vão até à beira do precipício, onde abruptamente dão por terminado o prelúdio da suite, a primeira das duas que compõem o disco. Convém respirar fundo, porque ainda falta andar metade do caminho.

Tomado o refresco, eis que o grupo ataca nova composição colectiva, explorando as complexidades minuciosas da improvisação livre de matriz britânica. Nesta fase das operações o ênfase é posto nos aspectos microscópicos da música, com o saxofonista a investigar um espectro sonoro que se situa algures entre Evan Parker e John Butcher, que compreende mudanças imprevisíveis de direcção até reentrar nos caminhos do jazz. Temos instrumentista de primeira, que aqui assume maior proximidade estética de Rob Brown que de Ken Vandermark, quer a escolha do momento seja o sax tenor ou o sax alto. Mas, adiante.

A última passagem da primeira suite abre com um solo de Piano. Jim Baker trás à memória o mais recente trabalho de Burton Greene, Live at Grasland (Drimala). Concentração, beleza formal e profundidade emocional - é um encanto o teclar deste senhor Baker! Introduzido o tema, à voz solitária do piano juntam-se as outras três, todas no mesmo tempo lento, quase solene, perfeito para criar tensão e daí a pouco lançar Rempis para a estratosfera, com tempo e espaço para soltar o som grandioso do seu tenor. Sempre com novas revelações, surpresa atrás de surpresa. Sente-se a alegria de tocar destes músicos, que se superam na criação de sugestivas imagens sonoras.

A segunda das duas suites de Out of Season, "Scuffle", segue o modelo estético da improvisação livre britânica. Jim Baker troca o piano pelo sintetizador. As texturas que produz casam bem com os outros instrumentos. Boa opção. É o sintetizador que dá voz de comando, oscilando entre o noise electrónico e a improvisação reducionista ("near silence"). Estalam cordas, raspam correntes, arranham sons electrónicos. Tudo inspira Rempis a soprar novos motivos sobrepostos ao ambiente saturado de partículas sonoras em suspensão, impressionante até ao estertor final. O disco ainda não acabou e já apetece voltar ao princípio.

" Never at a Loss", composição-epílogo, retoma o ambiente jazzy etéreo ao estilo de Marilyn Crispell, nas gravações da ECM. Durante breves minutos o saxofonista recolhe-se em silêncio, de olho nas deambulações do trio por territórios de maior apaziguamento e introspecção. Por fim, entra em cena para a coda, o sublinhar melancólico desta extasiante jornada musical.

Tudo corre às mil maravilhas neste Out of Season. Dave Rempis tem bastas razões para estar muito contente com o primeiro disco em quarteto, como imagino que esteja. Não é caso para menos. E bem pode agradecer a Jim Baker. Pianista de todos os contextos, Baker é o homem que faz a diferença, que constrói o quarteto a partir do trio, se assim se pode dizer. Rendimentos dos mais de 20 anos de trabalho que já leva em Chicago, talvez.

E a Jason Roebke, jovem contrabaixista e compositor, que também tem a sua quota-parte de mérito neste louvável empreendimento colectivo, uma força sempre presente, mesmo quando não se dá por ele. Ou seja, Roebke adquiriu a qualidade que normalmente se vê atribuída aos mestres, músico que tão bem se entende com Tim Daisy, com quem partilha responsabilidades no trio Rapid Croche. Daisy é sem dúvida rapaz a ter em conta nos anos vindouros, indiscutivelmente um dos mais importantes e interessantes bateristas da nova vaga de Chicago, cúmplice de Rempis no Vandermark 5. Isto anda tudo ligado...

Mas o que é realmente excitante neste disco, mais que apreciar o desempenho e a técnica individual de cada músico - que nunca chega a ser a mera exibição de capacidade instrumental - é apreender todo o manancial de pormenores harmónicos, as dinâmicas colectivas, as diferentes sensibilidades dos artistas em palco; e, acima de tudo, a comunicante energia que emana desta música convincente, porque confeccionada em directo e servida sem corantes nem conservantes. Música que preenche espaços vazios e tem o condão de humanizar os dias que se vão tornando áridos. Uma lança no combate à desertificação e um prazer para ambos, coração e intelecto. Em cheio, Mr. Rempis! Viva a Liberdade!

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